terça-feira, março 23, 2010

Um recital poético


Depois que as últimas bandejas circularam sem que ninguém se utilizasse, o Mendonça, a pedido das senhoras, foi recitar. Em pé no topo da casa, mãos no espaldar da cadeira oficiosamente chegada por Henrique Paradela, passada a destra pela sua grenha de vate romântico ou de tenor de café-concerto, ele bramiu calorosamente, entre iracundo e apocalíptico, uma extensa homilia toda sangrante de apóstrofes em brasa ao prosaísmo do mundo, ao conflito dos interesses, à imoralidade «campeando infrene», ao domínio brutal da força, ao «culto abominante» do deus Milhão. Era de ver como de estrofe para estrofe cresciam, lategando o assunto, as sátiras juvenalescas e os sarcasmos voltairianos; como esfuziavam conceitos pícaros ao modo de Pope, Dryden, Alfieri; como estoiravam as gargalhadas satânicas de Rabelais - o que tudo o inspirado mancebo ia realçando a primor com repercussões cavas, tiradas do tórax a murro, com reviramentos trágicos dos olhos vingadores, e com choradinhos de efeito na voz lamuriante.
Depois, gradualmente, a poesia amansava e alisava-se, como um rio que passa de remoinhar num estrangulamento anfractuoso de rocha, a adormecer lânguido e fácil num leito amplo de areias. Então, mal corria no verso um como encrespamento de brisa, um suave frémito amoroso... De onde a onde, um cândido evolar de aspirações da mais pura transcendência, uma suplicação larga e veemente, erguida num fervor de prece para um alto ideal sonhado e inatingível, revelavam a alma do poeta, nobremente espantada, esmagada, agonizante no pandemónio do torvelinho humano; alanceada pelo contraste do facto com a ideia, da matéria com o espírito, da teoria com a realidade; sofrendo a fatal compressão de aniquilamento em que as transformações sociais espremem os fracos, os tímidos, os delicados. Ela pedia o exílio, a abstenção, o isolamento, para longe das batalhas épicas da vida, para um ermo onde pudesse finalmente alcançar, na sua expressão culminante, bem inteiro, bem completo e bem perfeito, esse divino, simples, imaculado gozo, que ele sentia intimamente, e que queria realizado a dois na grande pacificação dos campos, na tranquilidade obscura dos humildes, no esquecimento inefável dalguma casita modesta, perdida na solidão... E aqui os olhos do clamoroso vate iam cair suplicantes, num amortecimento langoroso, sobre os olhos da D. Julita, que se torcia na cadeira, desesperada.
Desgrenhadamente lúbugre o final. Não esquecera o «mistério, o palor funéreo, o cemitério» e bastas rimas no género, que imprimiam àquela arenga arrepiante um ar plangente e fantástico de elegia.

Abel Botelho, O Barão de Lavos (1891)

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