Não é sem algum espanto e certa dose de mágoa e revolta que assistimos, nos dias que correm, a uma cruel agressão ao português europeu que, segundo parece, tudo tem para futuramente vingar como norma, impondo assim ao padrão da língua uma equivocada produção fonética de grave e desprezível natureza. Falamos da confusão que parece ter-se estabelecido entre as formas verbais do presente do indicativo e do pretérito perfeito do indicativo, no que à segunda pessoa do plural dos verbos da 1ª conjugação diz respeito. Sendo estes últimos, sabidamente, aqueles que na sua forma infinitiva terminam em "-ar", tomemos o verbo "trucidar" como exemplo. A sua forma na segunda pessoa do plural do presente do indicativo é, como aliás ninguém quase erra, "nós trucidamos". O doloroso problema tem que ver com a sua correspondente forma no pretérito perfeito. O que correctamente seria "nós trucidámos", assim mesmo, com a vogal final da raiz (o "a") em máxima abertura, é actualmente reproduzido por alguns falantes como se de um presente se tratasse, ou seja, com a vogal fechada. É só prestar um pouco de atenção à nossa volta e notar como este erro se encontra perigosamente disseminado pela comunidade falante do português europeu. Aquilo que começou nas regiões mais setentrionais do território alastra agora por todo o lado, comunicação social audiovisual incluída.
Duas reflexões são a este propósito pertinentes. A um nível mais superficial e evidente, não poderá negar-se serem os falantes quem faz a língua, pelo que esta não se orienta por um rígido conjunto de normas intemporais, mas sim pelo uso quotidiano que dela é feito. Todas as evoluções de um idioma tiveram início no suposto erro ou incorrecção, fruto acima de tudo de um sentido prático ou comodista e não de qualquer consciência conspiratória. O tempo e o hábito encarregam-se de homologar os desvios, incorporando-os nos válidos parâmetros da língua. Não obstante, por outro lado, não deixa de causar alguma preocupação, neste caso em particular, a constatação de que se está perdendo a distinção entre presente e passado, no que à produção fonéticas das ditas formas verbais diz respeito. Imaginai só que equívocos e trágicos mal-entendidos não poderá tal confusão originar. Já para não falar na possibilidade de poder isto constituir, por simbologia ou até exagerada pirueta mental, uma certa imagem do nosso tempo. Quando passado e presente não mais se distinguem. E evocar aquele é também poder dizer este último. Fatal homonímia, que tememos já irreversível.
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