sexta-feira, março 26, 2010

Gonçalo


Suponho que o que me esteja a acontecer por estes dias fosse por algumas pessoas, mais inclinadas para o exagero ou para a credulidade sobrenatural, designado por ligeira assombração. É que tendo tu já falecido há uns anos a esta parte, não faz grande sentido eu andar agora a encontrar o teu nome e a tua figura um pouco por todo o lado. Não te ofendas se eu utilizar isto como matéria para um textinho. Longe de mim querer implicar com gente do teu recém-adquirido estatuto. Ainda para mais fomos uma espécie de amigos durante o curto tempo que por aqui andaste.
Queres que te recorde, assim num apanhado resumido, as ocasiões em que me tens aparecido recentemente? No outro dia, a arrumar uma papelada, veio parar-me às mãos um trabalho teu da faculdade para uma cadeira de literatura portuguesa. Revisitavas Pessoa. Confesso-te nunca ter lido esse teu ensaio com a atenção devida. Depois foi num debate público sobre revistas literárias a que tive a triste ideia de assistir. Numa dessas publicações, de sugestivo título Cráse e sóbria aparência, lá figuravas tu com um poema. Hão-de sempre brilhar em revistas ou antologias as composições de poetas recém-falecidos, especialmente se jovens, desconhecidos e suicidários. Daí também ter lido ontem na revista da nossa faculdade uma "breve abordagem à obra e vida de José Gonçalo Bernardo Castello Branco", assim mesmo, com toda esta simpática pompa. E por fim, já esta noite, sonhei que ali na Rua da Imprensa Nacional, onde tantas vezes me cruzei contigo (eu a caminho de casa e tu em visita a um amigo que habitava na residência académica que por ali há), dois grupos de rufias se enfrentavam ao soco e pontapé. Eu assistia assustado a uns metros de distância. E tu fugias rua abaixo, o corpo lesto e ágil, parece-me que correndo mais por pressa em chegar a um compromisso urgente do que propriamente para escapar à escaramuça.
Não nos chegámos a despedir, Gonçalo. Dadas as circunstâncias, talvez não te tenhas despedido de ninguém. Mas isto não é uma elegia a um poeta desaparecido. Não leves a mal, mas não me ficaria bem tender agora para o sentimentalismo. Vou ler a tua poesia mais de perto. Talvez um dia ainda falemos sobre isso. Já tenho preparadas duas linhas de um diálogo nosso daqui a uns tempos, no além. Um diálogo assim à filme de grande fôlego. Tu dizes, eu estava muito doente. Ao que eu respondo, com supremo sentido de oportunidade, weren't we all?

4 comentários:

redonda disse...

Muito bem escrito e fiquei na dúvida se existe/existiu ou não
o José Gonçalo Bernardo Castello Branco.

João Miguel Henriques disse...

Existiu pois. Desta vez é verdade o que se diz, coisa rara por aqui... Obrigado pela visita...

Unknown disse...

Sem dúvida. Excelente pedaço de prosa. Investigar é procurar por essa Crase... Não que eu seja desconfiado, é que me custa a acreditar. ;)
Um abraço.

Francisco Serra Lopes disse...

Obrigado por este texto que me manteve num quase êxtase comungante do princípio ao fim. Comungo com tudo o que escreveste. Felicito-te pela sensibilidade, pela oportunidade e pelo brilho da tua inteligência. O Gonçalo vive sempre no que criarmos com ele e dar vida à poesia é, creio, a melhor forma de lhe manifestar alguma amizade. A homenagem post mortem é patética. A amizade fiel é redentora.