sexta-feira, novembro 05, 2004

A fuga dos carvalhos para norte

Vou confessar-vos uma coisa, sem falsas modéstias ou rodeios escusados: vivo e procuro viver em comunhão com a natureza. Outros haverá como eu. Para muitos será uma opção de vida, tomada com seriedade e dedicação. Para mim é uma necessidade, uma pulsão espontânea que foi cá dentro criando o seu espaço. Veio a tornar-se um imperativo de tal ordem, que não sei mesmo quanto tempo mais poderei suportar viver neste cancro urbano de ares exaustos. Até à hora da mudança vou satisfazendo estes pulmões mirrados com regulares escapadas ao campo, fonte de sossego e boas energias. Empreendo longas caminhadas, sozinho ou comigo mesmo, pelos frondosos bosques das cercanias desta urbe. É nessas alturas que vou buscar o ânimo de existência, de que tantas vezes me encontrei já escasso. Enceto trilhos por entre formações rochosas, sobre o manto torrado de folhinhas e ramos. Vou atrás do canto da passarada ou de um qualquer ruído de animais, seguindo-lhes o rasto para lhes contemplar as cores e as formas. Deixo vir banhar as minhas faces a luz que irrompe a custo por entre ramagens de verdes e dourados. Reconheço na mãe natura a minha voz primeira, a química dos meus sentidos, a perfeição das criações.
Terá sido uma manhã dessas, um fim de tarde, pouco importa. Passou por mim, flamejante, uma fileira alvoraçada de carvalhos vistosos, sobranceiros. Os troncos grossíssimos, os ramos ferozes. A imponência da natureza em explosão. Não passavam excessivamente rápidos. Mas como vinham bem enfileirados! Distintíssimos! Coloquei-me à beira do caminho que tomavam, queria vê-los de perto. A flora fascina-me, grande ou pequena. Ardia por ser também eu um pedaço de tudo aquilo, elemento integrante daquele teatro monumental. Sem medo ou pejo acabei por montar um dos carvalhos. Decidi-me por um deles, tirei-lhe as medidas e acompanhei por alguns metros o ritmo da sua passada. Identifiquei depois os ramos que me pudessem fazer subir à folhagem e analisei o espaço que lá em cima poderia ter para me acomodar. E para lá trepei, não sem dificuldade, abalroado pelos movimentos ritmados daquela árvore. Uma vez lá em cima, acomodado por três grossos ramos, decidi meter alguma conversa. Julguei poder criar os laços de uma nova amizade. Imaginava como gostavria de poder falar com os carvalhos imensos. E até de ter particulares com as suas partes. Segredar uma história às folhagens, gozar com os ramos, gritar ao tronco o poder do seu tamanho, quem sabe um flirt com as raízes corredoras. Eu bem sei que os carvalhos não falam. Eu sempre soube. Ainda assim, montado num deles e a toda a sela, percebi que fugiam. Atrevi-me a perguntar para onde. Mas os carvalhos em fuga nunca nos dizem o seu destino. O que é certo é que a palavra norte andava espalhada por todos os palmos daqueles corpos vigorosos. Eu vi o norte por toda aquela constelação de ocres húmidos. Em fuga.

Sem comentários: