sexta-feira, dezembro 26, 2003

Quatro

Se eu te perguntar agora o que vamos fazer com as nossas vidas vais ficar calada, tenho quase a certeza. Tenho passado as manhãs e algumas tardes a coleccionar os elementos que constroem à minha volta o espaço em que me encontro. Movo-me lentamente e registo eventuais alterações. Deixo a luz entrar solenemente pela larga janela da varanda para dar conta dos seus cambiantes e sentir o ar afogar os meus olhos. Reflicto também sobre banalidades quotidianas, e vou adiando outros temas a necessitar debate sério, sem urgência. E que vamos fazer nós das nossas vidas? O que é que em último caso pode ser feito? O que é que os dias trazem consigo que ao menos valha a pena? Vamos preferir ficar calados. Vamos esperar, permanecer. Agora vem chegando lentamente a segunda vaga de abstracção. Vou procurar convencer-me da natureza da realidade em que me movo. E o meu pensamento, em auto-avaliação, vai acreditando solidamente na verdade de todos os contornos. Abstraio-me do que possa vir a sentir. Um fôlego a mais e morro. É possível viver assim. Ficar à escuta, um pouco como que à espera.
Já se passaram uns anos e vai por certo chegar o dia em que vamos de novo fazer a mesma pergunta. Já não será olhos nos olhos. A resignação pesa sobre a cabeça e crava os olhos no chão. Passados já uns anitos, podemos agora defender-nos dos dias que hão-de vir, falando dos dias que já foram. Ainda somos capazes de recordar. Vai matando o tempo e cria entre nós sentimentos estáveis. Há quem lhes chame laços. A próxima vez que nos questionarmos sobre o que fazer das vidas tão nossas, não haverá mais razão para alarme. Todo o tempo que tivemos estará já atrás de nós, passado diante dos próprios olhos. O que está à frente é tão vazio que até dói. Vazio demais para ser verdade.
Pensamos às vezes na morte. Podemos até vir a ter uma surpresa. Por enquanto vamos entretendo as horas a recordar um pouco mais. Agora mais do que nunca. É já um passatempo. Isto vai mesmo criando laços fortes. Podemos ainda, se quiseres, pôr em causa a validade da pequena existência que nos foi sufocando. Podemos lembrar que não havia nada a perder, que tínhamos que ter decidido o que fazer da nossa vida, custasse o que custasse. Talvez fiquemos loucos. Mas quando eu sentir que chegou a nossa última hora juntos, vou olhar-te olhos nos olhos. O amor levanta a cabeça e crava os meus olhos nos teus. Há quem diga que é aqui que se chora a valer. Vou gostar de ter passado uma vida contigo. E todas as horas, se inúteis e apagadas, foi por não te ter nos meus braços. E se nada fizemos da vida, foi porque nada havia melhor para fazer que colar os corpos com o suor da noite. E selá-los com beijos. E fingir que até nos preocupávamos com o que fazer dos dias depois.