sexta-feira, dezembro 19, 2003

Três

Travei recentemente conhecimento com um jovem marinheiro das bandas litorais de Aveiro, simpático e afável, mas de uma extraordinária ingenuidade. Foi uma situação acidental, ele meteu conversa comigo, eu andava por ali. Quis saber algumas coisas sobre mim e assim iniciou uma conversa. Dez minutos depois já me estava a dar cigarros, ditos 'dos dele', daqueles que ele fuma no barco em temporadas de pesca. Uns banalíssimos winston em maço mole. Aceitei um maço inteiro e ele começou a desabafar-me as suas dificuldades em mover-se na capital do império. Teria de ir para o Porto ao início da noite e não fazia ideia onde ficava Santa Apolónia. O facto de se encontrar absolutamente teso não ajudava à situação. Mas ele era um marinheiro em serviço, recambiado do alto mar para terras pátrias por ter quase perdido um dedo num acidente com redes e não poder mais vergar a mola. E como era monstruoso aquele polegar esquerdo! Esperava poder contar com as autoridades para chegar à estação. Eu tudo ouvi e compreendi. Compadeci-me dele. Mas não estava nas minhas possibilidades ajudá-lo. E por acaso começava a já não poder mais ouvir o homem, essa enorme besta defeituosa. Dei a entender que me preparava para ir embora. Deteve-me por minutos ainda, acabou por me pedir dinheiro para comprar o bilhete, como se fosse evidente que não pudesse recusá-lo. Não tive outro remédio que mandá-lo à bardamerda. Levantei-me e virei-lhe as costas. Não me arrependo... Sou por vezes impetuoso e desagradável, e não me preocupo em portar-me como sou. Pobre homem do mar, reles e honesto. Gravado traz no peito o cheiro a porão e maresias. Nem que me pagassem me apanhavam nesses barcos imundos a braços com pesca grossa.