sexta-feira, novembro 11, 2011

Da ocorrência da obra de arte

Uma obra de arte não pode existir sem um terreno social onde mergulhe as raízes. É o vértice de uma pirâmide que precisa de uma base. E a base é tanto mais ampla, as raízes vão tanto mais fundo, o processo de elaboração é tanto mais complexo e integrador, quanto mais elaborada nos aparece a síntese - estética ou ideológica. É necessário que haja grupos humanos com escalas de valores definidos; é necessário que haja consciência dos limites e da transitoriedade desses valores, quer por serem patentes as suas contradições, quer porque entram em oposição com os de escalas diferentes; e é necessária a experiência humana vivida e meditada à luz destas contradições, desta mutabilidade dos valores que se contradizem ou se opõem e que se sujeitam à revisão.
Esta base e experiência social é condição necessária de toda a forma de elaboração ideológica ou estética. Lá onde foi possível uma obra de arte existiu necessariamente essa base. É por isso que uma obra de arte é significativa, e tanto mais quanto maior é o seu nível estético, ou seja, o seu grau de elaboração. Mas a recíproca não é verdadeira: lá onde existiu uma base social adequada não é necessário que exista também a correspondente síntese ideológica ou estética. A condição necessária para o florescimento da obra de arte não é só por si suficiente. A obra de arte exige mecanismos delicados, tais como escolas, tradições, convívios, etc., coincidências de oportunidades cujo cálculo não conhecemos ainda, tais como a convergência pouco comum de certa feições temperamentais no mesmo indivíduo, juntamente com uma experiência pessoal e circunstâncias particulares (certa combinação de actividade e de ócio, etc.). A Espanha barroca é a base necessária do Quixote; e a pessoa de Cervantes, com a sua formação, o seu meu próprio, o seu temperamento, a sua biografia, etc., constitui uma das condições complementares sem as quais o Quixote não existiria.

António José Saraiva, Comércio do Porto (número especial dedicado aos escritores portuenses)

1 comentário:

Flávio Ricardo Vassoler disse...

Olá, João! Tudo bom com você?

Confesso que, no início do fragmento, fiquei com receio de que se tratasse de um excerto próprio aos epígonos mais deterministas de Marx - a velha relação causal entre base e superestrutura.

Felizmente, fui completamente frustrado na minha projeção inicial. O fragmento é interessantíssimo em sua dialética envolvendo as condições objetivas e subjetivas para a constituição da obra de arte.

Enquanto o lia, me vinham à cabeça duas situações histórico-literárias diametralmente opostas: o século XIX russo e a atualidade.

Se lançarmos mão da tensão para a constituição da obra em meio a uma atmosfera efervescente que favorece as filiações, os contrapontos e o caráter prolífico, veremos na geração dos pais de Lênin um terreno praticamente sem paralelo na história da literatura. Não foi casual a ocorrência de gigantes como Dostoiévski e Tolstói. Os russos "utilizavam" a literatura para discutir, pela mediação estética, todas as questões prementes da situação explosiva que acossava o império feudal cuja ruína iminente contrastava com a modernidade.

Poderia ser feito um estudo, por exemplo, em relação à influência da censura para a constituição da escrita hieróglifa e esópica entre os russos. A ironia, por ali, não poderia ser dissociada das tensões objetivas.

Dialeticamente, o guarnecimento objetivo não determina, necessariamente, a existência de belas obras de arte. No entanto, o que o autor sugere é não a mônada individual que se embeberia das influências objetivas para daí criar a obra. O indivíduo, no fluxo objetivo-subjetivo que o autor analisa, me parece mais um feixe de confluências. A sensibilidade tende a ser forjada como uma entrega subjetiva ao Espírito do Tempo para que a obra trace um diagnóstico de época.

E aqui a dialética do autor supera a si mesma: como o conteúdo de verdade dessas relações é marcadamente transitório, a obra de arte também não constitui um sistema fechado em si mesmo, vale dizer, a obra de arte não é idêntica a si mesma ao longo da História. O sujeito que se fundiu ao objeto pela criação pode ser mais ou menos aparente, em decorrência da maior ou menor atualidade das questões que, à época da constituição da obra, ainda eram bem latentes.

Se pensarmos na contemporaneidade à luz dessas reflexões, poderemos entender o caráter estéril e asséptico da literatura atual. Para além dos círculos esotéricos, a indústria cultural e suas demandas de mercado pautam as produções culturais - nem preciso dizer que o cafetão Paulo Coelho é um "belo" exemplo nesse sentido, não é mesmo?

Dada a ausência de efervescência social, política e estética, o peso da dialética recai sobremaneira sobre os ombros do artista que, no capitalismo tardio, mais parece um autista - para o enorme sofrimento daqueles que queremos dizer algo.

Mais uma vez, João, muito oportuna a postagem a ensejar reflexões.

Um abraço,

Flávio Ricardo