Uma obra de arte não pode existir sem um terreno social onde mergulhe as raízes. É o vértice de uma pirâmide que precisa de uma base. E a base é tanto mais ampla, as raízes vão tanto mais fundo, o processo de elaboração é tanto mais complexo e integrador, quanto mais elaborada nos aparece a síntese - estética ou ideológica. É necessário que haja grupos humanos com escalas de valores definidos; é necessário que haja consciência dos limites e da transitoriedade desses valores, quer por serem patentes as suas contradições, quer porque entram em oposição com os de escalas diferentes; e é necessária a experiência humana vivida e meditada à luz destas contradições, desta mutabilidade dos valores que se contradizem ou se opõem e que se sujeitam à revisão.
Esta base e experiência social é condição necessária de toda a forma de elaboração ideológica ou estética. Lá onde foi possível uma obra de arte existiu necessariamente essa base. É por isso que uma obra de arte é significativa, e tanto mais quanto maior é o seu nível estético, ou seja, o seu grau de elaboração. Mas a recíproca não é verdadeira: lá onde existiu uma base social adequada não é necessário que exista também a correspondente síntese ideológica ou estética. A condição necessária para o florescimento da obra de arte não é só por si suficiente. A obra de arte exige mecanismos delicados, tais como escolas, tradições, convívios, etc., coincidências de oportunidades cujo cálculo não conhecemos ainda, tais como a convergência pouco comum de certa feições temperamentais no mesmo indivíduo, juntamente com uma experiência pessoal e circunstâncias particulares (certa combinação de actividade e de ócio, etc.). A Espanha barroca é a base necessária do Quixote; e a pessoa de Cervantes, com a sua formação, o seu meu próprio, o seu temperamento, a sua biografia, etc., constitui uma das condições complementares sem as quais o Quixote não existiria.
António José Saraiva, Comércio do Porto (número especial dedicado aos escritores portuenses)
1 comentário:
Olá, João! Tudo bom com você?
Confesso que, no início do fragmento, fiquei com receio de que se tratasse de um excerto próprio aos epígonos mais deterministas de Marx - a velha relação causal entre base e superestrutura.
Felizmente, fui completamente frustrado na minha projeção inicial. O fragmento é interessantíssimo em sua dialética envolvendo as condições objetivas e subjetivas para a constituição da obra de arte.
Enquanto o lia, me vinham à cabeça duas situações histórico-literárias diametralmente opostas: o século XIX russo e a atualidade.
Se lançarmos mão da tensão para a constituição da obra em meio a uma atmosfera efervescente que favorece as filiações, os contrapontos e o caráter prolífico, veremos na geração dos pais de Lênin um terreno praticamente sem paralelo na história da literatura. Não foi casual a ocorrência de gigantes como Dostoiévski e Tolstói. Os russos "utilizavam" a literatura para discutir, pela mediação estética, todas as questões prementes da situação explosiva que acossava o império feudal cuja ruína iminente contrastava com a modernidade.
Poderia ser feito um estudo, por exemplo, em relação à influência da censura para a constituição da escrita hieróglifa e esópica entre os russos. A ironia, por ali, não poderia ser dissociada das tensões objetivas.
Dialeticamente, o guarnecimento objetivo não determina, necessariamente, a existência de belas obras de arte. No entanto, o que o autor sugere é não a mônada individual que se embeberia das influências objetivas para daí criar a obra. O indivíduo, no fluxo objetivo-subjetivo que o autor analisa, me parece mais um feixe de confluências. A sensibilidade tende a ser forjada como uma entrega subjetiva ao Espírito do Tempo para que a obra trace um diagnóstico de época.
E aqui a dialética do autor supera a si mesma: como o conteúdo de verdade dessas relações é marcadamente transitório, a obra de arte também não constitui um sistema fechado em si mesmo, vale dizer, a obra de arte não é idêntica a si mesma ao longo da História. O sujeito que se fundiu ao objeto pela criação pode ser mais ou menos aparente, em decorrência da maior ou menor atualidade das questões que, à época da constituição da obra, ainda eram bem latentes.
Se pensarmos na contemporaneidade à luz dessas reflexões, poderemos entender o caráter estéril e asséptico da literatura atual. Para além dos círculos esotéricos, a indústria cultural e suas demandas de mercado pautam as produções culturais - nem preciso dizer que o cafetão Paulo Coelho é um "belo" exemplo nesse sentido, não é mesmo?
Dada a ausência de efervescência social, política e estética, o peso da dialética recai sobremaneira sobre os ombros do artista que, no capitalismo tardio, mais parece um autista - para o enorme sofrimento daqueles que queremos dizer algo.
Mais uma vez, João, muito oportuna a postagem a ensejar reflexões.
Um abraço,
Flávio Ricardo
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