terça-feira, setembro 14, 2010

Apontamento de língua 4

Em tempo de início de mais um ano lectivo, regressam os Quartos Escuros a uma rubrica que tem por humilde intenção iluminar alguns aspectos do nosso idioma, como o sejam curiosidades do uso, construções particulares ou tendências evolutivas.
Não será descabido afirmar que a progressiva perda da casuística latina nas língua românicas resultou em português numa riqueza preposicional assinalável, que nada fica a dever, por exemplo, à quantidade e diversidade semânticas dos "phrasal verbs" ingleses.
Uma das curiosas instâncias em que uma preposição, em toda a sua admirável versatilidade, age em contexto semântico e gramatical manifestamente distinto daquele que lhe é natural é a utilização de "em", não como habitual indicação de lugar ou estado (como seria dizer "exilar-se em Mogadíscio" ou "estar em grandes apuros"), mas com sentido condicional. Tal sucede na singular construção de "em" com forma verbal no gerúndio. Atentemos pois a um exemplo retirado de O Ano da Morta de Ricardo Reis, de José Saramago:

Ao entrar no quarto, Ricardo Reis vê a cama aberta, colcha e lençol afastados e dobrados em ângulo nítido, porém discretamente, sem aquele desmanchado impudor da roupa que se lança para trás, aqui há apenas uma sugestão, em querendo deitar-se, este é o lugar.

Alguns dirão, e até com propriedade, ser esta construção já raramente produzida pelos falantes, tendo talvez inclusivamente alguns traços de regionalismo. Outros sustentarão que o sentido aqui será mais temporal do que propriamente condicional. Mas o que pretendemos salientar, para além da comprovada riqueza da língua pátria, é a forma como por vezes o idioma acaba por estranhamente reflectir a vida. Ou talvez se passe o contrário, possivelmente, como tivemos aliás oportunidade de sugerir no anterior Apontamento 3. É que tal como sucede com a preposição "em", também na vida um estado ou um lugar funcionam em certos contextos como férrea condição de ser-se no mundo. O tempo, esse, lança permanentemente a sua sombra sobre tudo o que somos. Pois que, em querendo, tudo nos sonega ou oferece.

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