segunda-feira, março 29, 2010

Um poema de Gonçalo Castello Branco


Como será a chuva de depois

Como será o mundo já sem mim
Quem me lerá um dia seu eu for
Uma expansão começada p'la morte
Existe já um espaço tão diferente
Em que exista quem me rescreva
E esteja vivo e seja alguém e não o saiba
Que ao escrever me esteja a criar
No acto involuntário de amar
Que não é esta que tomo por minha
Donde vem o poema que eu escrevo
Que cria alguém que digno o receba
Para mais tarde perguntar como será
O mundo depois da sua existência
Sabendo outrora que o tinha feito
Enquanto segredava ao meu ouvido
Palavra após palavra o poema
Como existe agora e depois
Porque guardo p'ra ele a minha voz
Será a minha voz a sua voz
Como ficará o mundo sem nós
A chuva será concerteza a mesma
Outros virão acabar o poema
No acto involuntário de amar
E alguém fará suas as palavras
Suas as minhas interrogações
E o mundo girará alheio a tudo
A mim a ti a eles a quem virá
Encontrar-se comigo bem depois
Do momento em que me terão esquecido

(transcrito a partir de manuscrito reproduzido no jornal Os Fazedores de Letras, nº 68, Mar/Abr 2010, p. 15)

4 comentários:

redonda disse...

Poderá ser um heteronimo?

redonda disse...

E o poema recordou-me uma epifania que tive aos 16 anos quando esperava pelo autocarro e pensei que a minha morte só seria definitiva e terrível se eu fosse a última pessoa na terra porque não o sendo, continuaria viva quando alguém pensasse ou sentisse algo que eu já tivesse pensado ou sentido antes.

redonda disse...

Ou qualquer coisa assim porque já foi há algum tempo :)

João Miguel Henriques disse...

Uma epifania de muitas implicações, essa. E bastante precoce aos dezasseis anos :) Tem tudo que ver com as interrogações do Gonçalo, penso. Que não é, de todo, um heterónimo...