domingo, fevereiro 28, 2010

Radiografia


Não sei se era uma esplêndida loucura.

Porém a noite escura, àquela hora,

Veio pôr-me nos olhos

Uma super-visão de Raios X.

Tudo transparente e sombrio!:

Nas caves os criados trintanários,

Sonolentos, senis, alquebrados,

Como em pêgo profundo, no fundo dum rio,

Deitados.

E em sobrados nos altos das casas

As pessoas suspensas e presas

Nas invisíveis asas.


O clarão dos escuros e silêncios

Apunhalava as coisas indefesas

E era o meu guia.

E eu via, via tudo, entretinha-me a ver,

Aplaudindo em meus olhos

A tragédia funérea de ser.


A mulher que eu amava dormia.

E lá estava perdendo a magia

Das formas,

O mistério das coisas opacas.

Ai, eu via os seus orgãos medonhos, eu via,

Comprimidos boiando em fluidos

De estranha alquimia.


As donzelas! as puras donzelas!

- Como eram iguais seus esqueletos

E gesto de guardar a virgindade

Num halo,

Fechadas nas casas, sonhando!


E aqui, ali, além, de quando em quando

As cenas abismais,

Infiltrações letais – promiscuidade!:


Em ângulos mornos de alcovas solenes,

Dormiam, jaziam casados,

Ventrudos, coitados, casais de burgueses!:

Um respirava o ar que o outro expira,

Cantado, resfolgado,

Como o vapor em máquinas cansadas

Ou moléstias em papos de reses;

E na parede, sobre a mesa de pau-santo,

O cuco do relógio veniando

Quatro vezes.

E ó ruas, ó ruas viscosas,

Dormindo venenosas, como cobras

Digerindo!

Ó casas leprosas,

Envenenando o ar amigo meu e deles!

- O ar já gás emagrecido, manso mas cansado,

Azul e quente,

Pairando sobre as camas a gemer,

Piedosamente!

Ó gente, .................................................


E lá vinha, e lá vinha a elevar-se do rio,

Um calmo doentio nevoeiro grosso!

Tão velho rio!

Cantado pelos bárbaros poetas...

Tão límpido!

Mostrando-me as enguias nas buracas

E os cadáveres inchados

De afogados,

Espetados nas estacas.


E o silêncio!

Eu e uma cidade!

Apenas o rumor de traças infernais,

A roerem humanos, ocultas, danadas,

Como caruncho em madeiras

De casas abandonadas.


Eu e uma cidade...

Que a lava da noite veio sepultar

Dentro de mim...

Esta Pompeia que me entrou plos olhos,

Com suas mil estátuas e cenas do fim...

Este burgo dos idolos partidos e painéis

Cruéis, sumidos,

Que a minha alma ansiosa anda a escavar,

E que o loiro dinheiro dos Lords

Não pode comprar.



"Radiografia", do malogrado Políbio Gomes dos Santos (Ansião, 1911 - 1939), foi publicado pela primeira vez em 1939 na revista O Diabo, tendo integrado pouco tempo mais tarde o livro Voz Que Escuta, volume com o qual o poeta participou na colecção de Coimbra "Novo Cancioneiro". Acerca do poema e do lugar da poesia no seio do neo-realismo português, está aqui disponível um breve ensaio.

Sem comentários: