domingo, dezembro 20, 2009

Dois poetas

Foram entre nós recentemente publicados e apresentados dois belíssimos nomes da poesia ibérica dos nossos dias, em duas edições bilingues levadas a cabo com o esmero e sensibilidade de que a palavra poética necessita para medrar. Tanto um como o outro livro são de metabolismo lento e ponderado, embora já tenha dado para entender a qualidade do trabalho das traduções em causa, desenvolvidas por pessoas que tenho o maior prazer em conhecer pessoalmente.




De Cáceres chega-nos o trintão José María Cumbrenõ com o livro Teorias da Ordem (Águas Santas, Edições Sempre-em-Pé, 2009). A tradução esteve a cargo do também poeta Ruy Ventura, tratando-se o volume de uma reunião inédita da poesia do autor desde 1998 até ao presente, o que explica a notável diversidade de formas e inquietações contidas nas mais de cem páginas do volume. Cumbreño parece ser, por exemplo, especialmente inclinado para o cultivo da prosa poética, por vezes condensada ao extremo de uma só frase, porém raramente aforística. Reproduzimos aqui a alegoria de uma "Condução nocturna":


Dizem que de noite o melhor é guiarmo-nos pelas linhas da estrada.
Que basta segui-las.

No entanto, não sei, aquela vez que me chamaste da madrugada para me pedires que fosse à tua casa.
Porque tinhas algo de importante para me dizer.

Porque não podias dormir.

Sim, quando me confessaste que te tinhas apaixonado por outro.
(Seria, de certeza, imaginação minha.)

Mas então tive a impressão de que havia mais curvas que nunca.





Do já mais vetusto poeta catalão Joan Margarit, chega-nos a absolutamente maravilhosa Casa da Misericórdia (Entroncamento, Ovni, 2009), na bonita tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas. Em 2008 o livro recebeu no país vizinho o Prémio Nacional de Poesia , e devo confessar o privilégio que foi ouvir Margarit dizer alguns dos seus poemas em catalão, na sessão realizada na Casa Fernando Pessoa. Poesia angustiada a sua, mas de uma angústia clarividente, capaz de iluminar os grandes monstros humanos, naquilo que têm de arrebatamento e opressão: a morte, a memória, o tempo, a solidão. Transcrevemos "O sapateiro":


Costumávamos jogar ali à bola.
A praça da igreja erguia-se
uns dois metros acima de umas pequenas hortas

que estavam ao lado de um sapateiro.

Quando a bola caía, algum dos nossos
tinha de ir rápido dependurando-se.
Se o sapateiro chegava lá antes,

cortava-a com o seu cutelo.

Não sei que pescoço cortava na bola

de borracha daquelas crianças. Dava-me medo.
Um medo que já não era o mesmo
que o dos contos ou do quarto escuro.

Era um medo mais duro. Mais real.

Como quando estavas com outro,

ou quando morreu a nossa filha.


1 comentário:

Unknown disse...

Coisa mais violenta essa poesia do sapateiro. A tua ainda repousa na mesa, mas a que se foi deixando descobrir no entreabrir de algumas páginas já me conquistou. Quando o livro estiver todo é que havemos de falar.