quarta-feira, novembro 18, 2009

Falar de poesia


A Poesia é, literal e propriamente falando, "incriticável". Criticar poesia, fazer crítica de poesia, com aquela confiante e tradicional boa consciência nossa conhecida, é o mesmo que criticar o Sol e as estrelas. No fundo, falamos sempre de outra coisa, e o melhor é sabê-lo para nos poupar ao menos uma suficiência de sonho. Enquanto tal, a Poesia (de que todo o autêntico poema é simultâneamente a incarnação e o falhanço...) é a palavra insusceptível de crítica por excelência, entre outras coisas, por ser ela o efectivo lugar crítico do espírito humano, ou pelo menos, aquele em que a luz que a cada momento concentra a totalidade espiritual é a mais intensa e profunda. O máximo de abertura humana contido na palavra é o que a poesia justamente é e configura. Supor que pode ser julgada a partir de outro horizonte que o da luz por ela criada é conceber que são as trevas quem ilumina o dia. É então sem sentido todo o discurso concernente à palavra poética? Assim seria se a Poesia fosse ela mesma uma realidade espiritual sem mediação, uma espécie de iluminação mística que apagasse em nós o permanente discurso que somos. Ora a poesia é apenas esse discurso incandescente. Na verdade, tal como Platão dizia do Amor no Banquete, a Poesia é, por esse facto, mãe do discurso e a mais fecunda de todas, exigindo como o Amor ao mesmo tempo a veneração silenciosa e um comentário sem fim que nos reenvia ao universo inteiro de onde afinal procede. É que, como o platónico Amor, a Poesia é também filha da riqueza e da indigência. O verdadeiro coração do poema é uma ausência abolida e sem cessar renascente, ausência objectiva tecida pela relação do que diz e cala, tanto como pela relação com as outras palavras poéticas que o situam e o tornam susceptível de apreensão comparativa. O que o discurso provocado pela obra poética tem a dizer (e a mais não alcança para nós a Crítica) diz menos respeito à inserção do poema na consciência do seu autor ou no espírito da sua época (um e outro acessíveis afinal na obra mesma) que ao diálogo objectivo criado em nós por uma leitura que é simultaneamente todas as leituras.

Eduardo Lourenço, Prólogo a Sentido e Forma da Poesia Neo-realista, Lisboa, Ulisseia, 1968.

2 comentários:

Juliana disse...

Muito bom seu texto, gostei do seu post


abs.
visite meu blog tbm. Espero que goste

Sylvia Beirute disse...

irrepreensível o texto.