sexta-feira, outubro 30, 2009

O esplendor de Portugal

Agradeço ao Professor Pedro Calafate a recordação deste excerto absolutamente delicioso de A Ilustre Casa de Ramires. Partindo dos traços principais do protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, Eça justifica aqui por inteiro, não apenas a fama de prosador virtuoso, como também o crédito de profundo conhecedor da alma portuguesa.

Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem vocês, sabe o Sr. Padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento esta semelhança. Aquele todo de Gonçalo, a franqueza, a doçura, a imensa bondade, que notou o Padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil. A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele arranque para África... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?
- Portugal.

1 comentário:

Ruy Ventura disse...

Obrigado por me relembrares este excerto do Eça, que tenho transcrito nos meus cadernos pretos. O retrato é fiel, mas ainda assim manso... demasiado manso!