Ocorreu-me recentemente começar a pensar a sério numa antologia de poesia sobre putas. São projectadas tantas antologias de versos hoje em dia: reuniões de poemas versando sobre um mesmo tema unificador, escolhas pessoais de ilustres personalidades e, claro está, as mais académicas antologias dedicadas a um dado período ou movimento literário. Porque não então o putedo, com todos os seus dramas e sucessos vertidos em poesia ao longo dos séculos? Não faltaria com certeza material de primeira qualidade.
Lembrei-me disto no decurso da minha profunda leitura de alguma poesia neo-realista portuguesa. A prostituição foi para alguns destes poetas tema de recorrente (e algo perverso) interesse. Já se imagina o motivo principal: na sua análise social de propósitos socialistas e redentores, prestaram os neo-realistas significativa atenção aos principais párias de uma sociedade desumanizada, putas naturalmente incluídas. Entre comiseração e crueza, com a assunção esporádica do desejo carnal por parte do próprio sujeito poético, muitos foram os poemas congeminados a este propósito.
Reproduz-se aqui um exemplo dos mais cruelmente realistas, a roçar a indiferença atroz no tom e no tratamento da figura principal. "Maria Fácil" se chama o poema, e é um dos primeiros da estreia de Sidónio Muralha, com o volume Beco, em 1941. Apesar de cedo ter emigrado para os brasis, onde ao longo das décadas atingiu notoriedade pública na qualidade de autor para crianças (alguns recordarão o seu nome dos livros da primária), Muralha foi um importante nome da fase de definição e afirmação do nosso neo-realismo literário, contando-se entre os mais marcadamente interventivos, e participando inclusivamente na fundamental colecção de poesia "Novo Cancioneiro" com o livro Passagem de Nível (1942). Ora vejai se logo aos 20 anos de idade não revelava já o jovem Sidónio um espírito de implacável análise social:
Reproduz-se aqui um exemplo dos mais cruelmente realistas, a roçar a indiferença atroz no tom e no tratamento da figura principal. "Maria Fácil" se chama o poema, e é um dos primeiros da estreia de Sidónio Muralha, com o volume Beco, em 1941. Apesar de cedo ter emigrado para os brasis, onde ao longo das décadas atingiu notoriedade pública na qualidade de autor para crianças (alguns recordarão o seu nome dos livros da primária), Muralha foi um importante nome da fase de definição e afirmação do nosso neo-realismo literário, contando-se entre os mais marcadamente interventivos, e participando inclusivamente na fundamental colecção de poesia "Novo Cancioneiro" com o livro Passagem de Nível (1942). Ora vejai se logo aos 20 anos de idade não revelava já o jovem Sidónio um espírito de implacável análise social:
I
A que se deu sem sonhos e sem boda
não há proposta a que não diga sim.
Poisar a mão na sua é tê-la toda.
Conhece encruzilhadas, calaboiços,
mas quebra os olhos mudos num jardim,
faz festas aos meninos pequeninos
que brincam nos baloiços.
II
Tem uma cruz de buxo à cabeceira.
Tem o retrato da mãe.
Tem um livrete negro na carteira.
Nada mais tem.
Maria Fácil, chamam-lhe na rua…
É o «enguiço» da prostituição.
Todos a viram nua,
que, para a verem nua,
paga contribuição.
Quando morrer, dirão na viela:
- "Lá vai Maria Fácil, o «enguiço»…
Que bom caixão para o corpinho dela…"
E não se fala mais nisso.
2 comentários:
posso-te passar bons poetas que, por vezes, fazem elegias às boas putas. este poema foi escrito por um amigo meu.
"o teu rosto de virgem messalina
bebe a angústia daqueles que visitam
o teu corpo no beijo da corola
falecida de cedos vendavais.
és a casa, o regaço, o alvo lençol,
o aconchego do sono desejado.
és a mãe, és a filha enternecida
na tristeza que dás e que recebes,
na alegria que mentes e não sentes
no sorriso que tentas e pertence
ao desejo do corpo aquietado.
mulher puta, doméstica, vadia
olhos virgens, os lábios de sexo
rezam o padre nosso e a avé maria.
mulher, sempre mulher a cada dia.
no perfume do sémen e do aloendro.
josé félix"
(in http://ateiadaaranha.blogspot.com/2004_01_01_archive.html)
Rapaz, o título do poema me fez lembrar a Maria do Grave do João Soares Coelho. Acho que isso é uma dica, João Miguel.
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