quinta-feira, agosto 27, 2009

Da arbitrariedade


O que eu estava descobrindo era terrível, muito mais terrível que a descoberta que o Rodrigues fizera, diante de mim, da natureza do mal, que era não existir. Os acontecimentos não tinham causa, as pessoas não tinham motivações. Aqueles e estas recebiam uma causalidade a posteriori. E, quando provocávamos, voluntária ou involuntariamente, acontecimentos, não o fazíamos por vontade própria, nem levados por uma fatalidade qualquer. Só a ideia da causalidade é que criava o dilema da autonomia ou da fatalidade. Onde não há causas, nem motivações, não há relação necessária entre o gesto que desencadeia e o processo desencadeado. Se o passado de uma pessoa a condiciona para proceder desta ou daquela maneira, nestas ou naquelas circunstâncias, condiciona-a igualmente para proceder da maneira exactamente contrária. E os acontecimentos, no seu encadearem-se, tanto podiam ser entendidos na ordem por que aconteciam, como de trás para diante. Apenas esse duplo entendimento possível era igualmente uma criação da minha imaginação. Mas, como a minha imaginação era anterior aos próprios acontecimentos que criava ou interpretava, estes surgiam, no seu acaso de surgirem (que dependia de tantas outras coisas que eu ignorava e sempre ignoraria), como uma responsabilidade minha. Não havendo causas nem motivações de nada, tudo se passava como se cada qual fosse o responsável exclusivo de coisas em que não tinha a mínima responsabilidade. E este estava sendo o sentido da vida. Daí que eu, mesmo à custa de outros, pudesse fazer dela o que me apetecesse, desde que aceitasse como parte do meu apetite as consequências dele que, imprevisivelmente, desabassem sobre mim. No mesmo momento, deixei de entender fosse o que fosse.

Jorge de Sena, Sinais de Fogo

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