Nem sempre é pacífica a relação dos escritores com as suas obras inaugurais, muitas vezes produtos de uma criatividade ainda pouco amadurecida ou resultado de um fulgor de juventude com o qual, mais tarde, o já experimentado autor pouco ou nada se identifica. Na literatura portuguesa, são vários os exemplos de autores (poetas, principalmente) que renegaram, ou pelo menos procuraram subestimar, as respectivas obras de estreia. Eis como o sempre contundente José Gomes Ferreira fala da sua obra primeira, Lírios do Monte:
Aos 17 anos, imberbe e cândido, possuía na gaveta toda a natureza metrificada e escrita, num caderno a que pus este título de sabor botânico: Lírios do Monte. Anos depois (...) parti com um amigo em peregrinação de estudo para o campo (...) - Olha: aqui tens os abrolhos. Já os conhecias? - Não, respondia eu, em êxtase de ignorância lírica. Só sabia que abrolhos rimavam com olhos. E as boninas? As que rimam com as colinas? Onde estão? (...) Um dia encontrámos no vale uma flor entranhadamente roxa. - Que é? perguntei curioso. Nunca vi essa flor! - Nem eu, respondeu o meu companheiro (...) Passados dias (meu Deus! Que vergonha!) entra-me o meu amigo pelo quarto, a gritar: - Sabes que flor é? - Não! - Não fazes ideia, pá? - Não! - Faz um esforço! - Não! - Pois ouve e não desmaies: é um lírio do monte! (...) Quando lembro este episódio e folheio, colérico, os ignóbeis Lírios do Monte, sinto ganas de ir à procura de todos os meus antigos professores do liceu para pedir-lhes explicações e quebrar-lhes a cara! (...) Vocês são os responsáveis de tudo: das boninas, das avenas, dos abrolhos a rimarem com olhos, dos lírios a rimarem com martírios e de toda a minha ignorância do mundo exterior a empurrar-me para a ilusão de só exisitir beleza dentro de mim.
José Gomes Ferreira, O Mundo dos Outros
2 comentários:
Excelente! Quem não atravessou já este dilema? Quem não sentiu já esta vergonha. E eu nada tenho publicado...
português boi
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