Não sei se deva estar aqui a alongar-me sobre a sua pessoa. Temo que seja algo que ele dispense por completo. Acrescento porém que foi com um enorme fascínio que recebi recentemente uma nova amostra da sua poesia, ambiciosa, pura, lexicalmente contundente. Ele diz ter sido de certa forma um regresso à poesia, após uma maior predominância na sua vida de outras leituras e reflexões, nomeadamente as relacionadas com o Doutoramento que se encontra a realizar na cidade de Barcelona. Mas uma vez cá dentro, a poesia nunca chega realmente a sair de nós, pois não?
Escorre de um fraco antebraço
linha de sangue, grossa:
a rude motivação é baço
reflexo da perda nossa.
O calor desaparece
desse braço para a anca
do moribundo amigo. Tece
uma linha que em vão estanca,
tépida. E a Providência
indica um trapo que aí jaz,
próximo. Não há ciência
que não mate. Desfaz-
-se-me o alento. Sofro
por ver a decadência
de cada corpo já amorfo.
É isso a experiência?
Reduz-se então o apego:
não é possível prolongar o luto
multiplicado. Quando chego
com os dedos à sua alma, escuto:
Eu não te peço afagos, companheiro;
não te peço um trapo que retenha
a vida que se esvai. O teu cheiro
a roupa quente, a tua voz castanha
de terra seca é tudo o que recolho
para levar para aquela terra estranha
de que falavas. Beija-me o olho
que ainda vê, fecha-mo, não venha
a morte antes de ti.
E vejo
como a retina se lhe abre em livro,
e inclino-me, solene, para um beijocomo quem quer eternizar o vivo.
Deixa-me ver a que sabe o hálito
rápido, acre na tua boca.
Detrás de quem beija – quero dizer:
por trás
do rosto a orelha que finta a noite
em que te sussurro orgasmos afins
à tua cadência que não ressona
mas ressoa enfim no meu alarido
interior, aí cumpres a tua função
conjugal e a excedes, até, no domínio
das personagens que passam dizendo
vamo-nos embora à queima-roupa.
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