E quando, seguro enfim de fazer [o doutor] comungar das suas ideias, lhe atirou com o argumento supremo, o de conhecer a psicologia dos grandes homens idos nos próprios lugares onde viveram, ficou desagradavelmente impressionado, ouvindo-o. Julgava então - dissera-lhe [o doutor] - que bastava ler o Hamlet sôbre o túmulo de Shakespeare para penetrar seu cérebro trágico? Ou que para compreender a loucura sanguinária de Nero era suficiente subir à colina donde o bárbaro imperador vira arder a bela Roma fazendo maus versos? Ingenuidade admirável! Ele já se havia sentado, em Seide, numa cadeira que fôra de Camilo. Uma cadeira de braços onde, por certo, o ironista sublime se agitara muita vez em febre criadora. Pois, acreditasse, não conhecera maior emoção que se estivesse no seu quarto, de chinelas, enterrado na ampla fofez de um maple. Queria dizer, pressentira um bicho da madeira numa das pernas do traste, roendo, e uma espécie de carocha marinhando-lhe peito arriba. E fôra tudo.
Afonso Ribeiro, Ilusão na Morte (Novelas), Porto, Sol Nascente, 1938.
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