Fôra há poucos dias, acabara de chegar à sala de operações, quando um enfermeiro empurrou suavemente para deante dêle uma mesa em que repousava uma rapariga adormecida, sob o poder de um narcótico. Num olhar rápido, quási indiferente, envolvera tôdas aquelas formas puramente delineadas e como que esculpidas em mármore pelo mais arrojado e hábil dos artistas. Informara-se do que se tratava e, erguendo o vestido, começara por desligar a tira de algodão que lhe rodeava o joelho. Tratava-se de um ferimento causado por um desastre. Fôra preciso operar, e êle, tremendo-lhe pela primeira vez nas mãos a lâmina afiada do bisturi, rasgava a carne com uma voluptuosidade até ali desconhecida, salpicando-se sensualmente do sangue purpúreo da rapariga. Depois, ao acabar o tratamento, e antes de se lavar, não resistiu ao desejo de lhe vêr o rosto e, levantando cuidadosamente o pano branco que o cobria, olhara-a por momentos : Era bela, duma beleza talvez exótica; nos olhos velados por longos cílios, havia manchas azuladas, e os lábios, apesar da doença, fremiam numa humidade morna de desejo. Ao vê-la assim, profundamente adormecida, sentiu tentações de lhe amachucar os lábios còrados num beijo violento e duradoiro.
Artur Varela, "Desenlace Imprevisto" (novela), in Cabeças de Barro (Coimbra, 1937)
1 comentário:
Muito interessante.
O que dirá o código deontológico dos profissionais da saúde sobre as relações destes com os pacientes?
Mais interessante seria a contemplação de um corpo belo, mas no Instituto de Medicina Legal...
Hoje estou muito necrófila. Desculpa, João... É que isto me fez pensar num poema ofeliano do Camilo Pessanha...
Beijinhos. Gostei de conhecer este texto.
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