quarta-feira, outubro 17, 2007

Fim de semana


E foi num desses momentos de auto-análise mais ponderada, numa dessas alturas em que o sentimento intenso dá lugar a um lampejo de razão clarividente, que ela concluiu como se tornara com o tempo dependente das suas visitas de fim de semana. Não que estivesse irremediavelmente apaixonada por ele ou sequer lhe fizesse imensa falta a sua constante atenção e companhia. Mas a verdade é que o fim de semana sem um telefonema seu, sem uma qualquer combinação para café, passeio ou teatro, afigurava-se-lhe profundamente violento. Tanto que a própria semana, aí a partir de quarta-feira, ou mesmo terça pela noite, tornara-se para ela um triste e doentio período de preparação para o ainda longínquo fim de semana. Uma vez que durante a semana de trabalho era impensável para ele deslocar-se a vê-la (assim o dizia ele, "impensável, minha querida"), passava ela os solitários serões a congeminar como seria o sábado ou a tarde domingueira. Não, não estava apaixonada, ou mortinha de amores, como lhe sugerira a madrinha numa conversa em que ela revelara à velhota a nova amizade que travara. Mas a verdade é que criara uma dependência, e isso com certeza não podia ser positivo.
Nesse sábado ele viria a casa dela, viria a buscá-la para um passeio de automóvel, talvez tivessem ainda tempo para lanchar do outro lado da serrania. Ela estava já à porta, mais que pronta, faltavam ainda quase dez minutos para a hora marcada. Sim, é verdade, é realmente quando se está de pé, quando se caminha um pouco de um lado para o outro, que a cabeça aclara as ideias e espírito consegue gozar dos chamados momentos de discernimento. Fora então que tomara súbita consciência do vício contraído, e o vício era ele, ele ao fim de semana, ele com ela, ou melhor, o contrário de ela sem ele, sem alguém que fosse, como aliás tinha sido a sua penosa existência até então. Daí ter percebido que havia uma escolha terrível a fazer, uma escolha a materializar em palavras, o que era quase sempre certíssima garantia de as coisas não correrem pelo melhor. Na verdade a escolha, apesar de difícil, deveria ser feita entre apenas duas opções possíveis: deixar de vê-lo, privar-se para sempre da sua companhia e, na medida das suas forças, procurar ultrapassar a áspera crise de privação que se previa, ou então confessar-lhe tudo o que lhe ia no peito, agarrar-lhe as mãos, o corpo se fosse preciso, e dizer-lhe, baixo, com a voz da raposa ardilosa, leva-me contigo, leva-me que sem ti não suporto mais ser.

4 comentários:

Nuno Lebreiro disse...

É melhor dizer, as palavras que mais magoam são aquelas que nunca conheceram a vibração das cordas vocais, que é como quem diz, aquelas que nunca foram ditas...

AR disse...

que saudades eu tinha de ler textos teus assim... surpreendentes!

Anónimo disse...

Gostei muito deste texto!

Oxalá ela diga a ele o que sente. Se ele não souber dar valor, tanto pior para ele.

Porque não nos contas o resto da história no próximo capítulo?...

:-)

Beijinhos.

Anónimo disse...

... Tão interessante e original, como tão universal: os sentimentos são para serem transmitidos, por mais profundos que sejam, ou por mais impróprios que pareçam...

...Chega a tocar, e faz reflectir!