sexta-feira, junho 02, 2006

Uma inveja

Aquela havia sido uma magnífica sessão sobre a vida e obra de Gabriele D'Annunzio. Sorridente, ainda que tímido, o jovem professor falara com a clareza e fluidez dos verdadeiramente iluminados. Naquela gelada manhã de inverno, num terceiro andar da george square, tomámos conhecimento da genial façanha levada a cabo por D'Annunzio nos primeiros anos da sua carreira literária: havia nada mais nada menos que encenado nos jornais da época a sua própria morte. Lograra, não sei já por que diligências, fazer publicar a falsa notícia do seu trágico e prematuro falecimento, de modo a potenciar o reconhecimento do seu nome e obra poética. Parece que a coisa resultara, apesar das inevitáveis manifestações de ultraje público que se seguiram, algo que de certa forma acabaria por caracterizar toda a carreira do controverso italiano. No final da hora e meia de aula, notei que me assolava, misturada com a natural satisfação de quem aprende algo de valioso, uma ponta de inveja intelectual. Aquele jovem professor sabia coisas fabulosas, estudara tudo aquilo com evidente competência e empenho e transmitira-o daquela forma cândida, quase empolgante. Eu nessa altura não era pessoa que reflectisse muito sobre as causas deste ou aquele estado de espírito. Pelo menos não me esforçava nesse sentido, parecia sempre fazê-lo de forma deficiente. Daí ter à época atribuído aquela ténue inveja ao um pretenso desejo de ter também sabido e estudado algo sobre Gabriele D'Annunzio, nem que tivesse sido apenas aquele fantástico episódio de uma morte encenada. Só anos mais tarde, já um pouco mais versado nas origens e contornos dos próprios sentimentos, desfiz o mito daquele suposta inveja por não ter lido D'Annunzio. Sentimento, diga-se de passagem, absolutamente descabido, visto que jamais havia reflectido muito sobre a presença do transalpino no cânone da literatura universal antes daquela brilhante aula. A inveja existira, não me enganara nisso, mas era, conforme pude acertadamente determinar, inveja da abslouta paixão com que aquele académico tratara o tema da sua predilecção. Inveja desse simpático desconhecido, por ter ele na sua existência livresca algo tão absorvente e estimulante que o ocupasse e justificasse o acordar de manhã. Desejo, não de conhecer Gabriele D'Annunzio, mas de conhecer fosse o que fosse com aquele mesmo ardor desinteressado. Era como invejar um amigo casado, não pela mulher atraente, mas pelo casamento feliz. Tudo isto concluíra eu, como já disse, anos após aquela prelecção sobre D'Annunzio. Mas mais vale tarde que nunca quando se trata de apurar as verdadeiras razões de um sentimento forte.

Sem comentários: