quarta-feira, janeiro 22, 2014

A última noite

Ninguém poderá acusar-me de não conhecer extensiva e detalhadamente o sistema produtivo deste país. Como é bem sabido por quem de direito e atestado nos inúmeros relatórios produzidos, procurei incansavelmente, durante os largos meses da minha comissão, formar a mais rigorosa ideia possível a respeito do sector de produção agrícola e industrial da nação, conforme me fora incumbido. Nisso creio ter sido sem dúvida bem sucedido. Movido pelo brio e paixão profissionais que julgo me caracterizarem, qualidades às quais não deixou de aliar-se certo natural interesse por paragens estrangeiras e estranhas culturas, calcorreei este território literalmente de lés a lés, em trabalho de campo pelas mais representativas unidades fabris e propriedades agrícolas, privilegiando em todas essas excursões o contacto pessoal com os responsáveis no terreno. Devo a propósito acrescentar, não sem ponta de justificado orgulho, ter logrado aprender qualquer coisa do grotesco linguajar que por aqui se fala, nomeadamente formas de saudação e apresentação, perguntas de âmbito quotidiano e vocabulário elementar relativo à minha área profissional. Tudo isto levei a cabo, tudo cumpri na máxima medida das minhas responsabilidades. Do resto não sinto que deva falar. Que queira. O extra-laboral só a mim me diz respeito, e asseguro que um ou outro delito possivelmente cometido jamais afetou o meu desempenho. Como disse e volto a sublinhar, aí está toda esse cúmulo de análises, relatórios e entrevistas a confirmar o cumprimento inatacável das minhas funções.
Foi portanto com aquilo a que costuma designar-se por "sentimento de dever cumprido" que na minha última noite de exílio, na véspera do meu regresso à saudosa pátria, decidi visitar uma última vez o meu bordel de eleição, o lugar que em tantas noites frias e solitárias me acolhera, na benevolência dos seus sórdidos veludos e lenitivas aguardentes de fruta. Chamam gato preto ao meu lupanar, nome que, tendo em conta a conhecida superstição popular, sempre me pareceu terrivelmente injusto por aí ter ido invariavelmente encontrar bonanças e fortunas após extenuantes jornadas de trabalho. Entrei nessa noite com um sorriso nos lábios, fugindo de uma chuva pesada que lá fora caía com insistência. Pedi um cálice e perguntei pela minha noiva, por aquela a que o meu corpo desde cedo se habituara. Suponho que a variedade nunca fez realmente o meu género, sou mais de afetos constantes e sólidos hábitos. Ela não estava. Fiz questão de lembrar à madame que era a minha última noite, mas a minha noiva adoecera essa semana. Estava de cama, mas desta feita engripada e não como habitualmente nas horas de serviço, acrescentara a matrona com um sorriso. Depois lá me foi recordando as virtudes e competências das outras moças, coisa da qual eu aliás não duvidava. Convenceu-me, deixei que uma se me sentasse no colo, toda beijos, carícias e ditos que nesta língua diabólica sempre soam a promessas de perdição. Levei-a para casa. À saída. tomando-a pela cintura com o táxi já à espera, ouvi ainda madame dizer, trata bem do senhor doutor que amanhã se vai embora.
Era boa rapariga, disso não havia dúvida, embora pouco se parecesse com a minha noiva. Quase nada tinha dos olhos melosos, dos lábios urgentes, da cintura ondulante. Um colega dissera-me um dia que eu sempre lhe parecia apaixonado quando falava desse anjo de prostíbulo, sugerindo-me inclusivamente resgatar a moça da má-vida, fazer-lhe um filho, prometer-lhe uma existência segura e tranquila. Mas eu jamais colocara a hipótese de me deixar ficar por ali, por aquelas remotas paragens, ideia que aliás me era positivamente insuportável. Entrámos no apartamento, já despido de tudo quanto era meu. O comboio partia cedo na manhã seguinte e eu já tinha as malas feitas, tudo preparado para o meu regresso a casa. Estava bem-disposta a moça, disse que eu era um homem charmoso e perguntou o que eu fazia. Ofereci-lhe vinho tinto, que ela não só aceitou como bebeu com estranha sofreguidão. Sentei-me no sofá e pedi-lhe que se despisse. Nada de especialmente rebuscado, apenas que tirasse a roupa à minha frente. Para dizer a verdade, eu não estava para grandes floreados, apenas tencionava cumprir a elementar sequência erecção-penetração-ejaculação, para depois mandar a rapariga à vida dela e gozar ainda umas poucas horas de sono. Disse que sim, que se despia, mas primeiro o dinheiro, queria ver o dinheiro, só para não haver mal-entendidos, conforme se justificou, sem conseguir olhar-me nos olhos, não sei se por embaraço ou já ligeira embriaguez. Passei-lhe o dinheiro para a mão e tentei beijá-la no pescoço, no lóbulo da orelha, ao mesmo tempo que lhe apertava o pulso em sinal de autoridade. Ela riu-se e mandou-me voltar para o sofá. Já em roupa interior, aproximou-se de mim insinuante e pediu-me que tomasse um duche, que eu não levasse a mal, mas que era uma questão de higiene. Desta vez não era para evitar mal-entendidos, embora eu já começasse a impacientar-me ligeiramente com tantos avanços e  recuos. Tudo era tão mais fácil com a minha noiva, pensei. E a falta que ela me fazia naquele momento, naquela minha última noite. Mas acontece que sou boa pessoa, modéstia à parte. E a última coisa que eu queria era arranjar problemas e pôr-me ali a discutir com a moça. Tomei o meu duche e quando saí da casa de banho ela tinha ido embora com o dinheiro.

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