sexta-feira, setembro 30, 2011

Hervás, sábio e herege

Quanto ao homem e aos animais, deviam a sua existência, segundo Hervás, a um certo ácido gerador que, ao fazer fermentar a matéria, lhe dava formas permanentes, da mesma maneira que os ácidos cristalizam as bases alcalinas e terrosas em poliedros sempre semelhantes. Considerava as substâncias fungosas que a madeira húmida produz como o elo que une a cristalização dos fósseis à reprodução dos animais e dos vegetais, e que indica, senão a sua identidade, pelo menos a sua analogia.
A um sábio como Hervás não custou muito trabalho escorar o seu falso sistema com argumentos e provas sofísticas, preparadas para ofuscar os espíritos. Afirmava, por exemplo, que as mulas, que são de duas espécies, podiam ser comparadas aos sais de base misturada, cuja cristalização é confusa. A efervescência de algumas terras com os ácidos pareceu-lhe que podia relacionar-se com a fermentação dos vegetais mucosos, e a esta, por sua vez, considerava-a como um começo de vida que não tinha podido desenvolver-se por falta de circunstâncias favoráveis. 
Hervás tinha observado que os cristais, ao formarem-se, se reuniam nas partes mais iluminadas do recipiente, ao passo que na obscuridade se formavam dificilmente. E como a luz é igualmente favorável à vegetação, considerou o fluido luminoso como um dos elementos que compõem o ácido universal que anima a natureza. Como tinha visto, também, a luz tornar vermelhos, pela longa exposição, os  papéis pintados de azul, isto pareceu-lhe mais uma prova de que podia considerá-la um ácido.
Hervás sabia que nas altas latitudes, nas proximidades do polo, o sangue, por falta do necessário calor, estava exposto a uma alcalescência que não podia ser detida a não ser pelo uso interno dos ácidos. Daí deduziu que, posto que o calor podia por vezes ser substituído por um ácido, o próprio calor era, sem dúvida, também um ácido, ou, pelo menos, um dos elementos do ácido universal. 
Hervás sabia que o trovão podia azedar e fazer fermentar os vinhos. E tendo lido em Sanchoniaton que, no começo do mundo, os seres destinados a viver tinham sido como que despertados para a vida pelo violento ruído do trovão, não teve escrúpulo em apoiar-se nessa cosmogonia pagã para afirmar que a matéria do raio teria podido dar o primeiro impulso ao ácido gerador, infinitamente variado, mas constante na reprodução de formas semelhantes.
O lógico teria sido que Hervás, no seu propósito de penetrar nos mistérios da criação, reconhecesse o seu Criador e lhe rendesse a sua glória. Oxalá o tivesse feito! Mas o seu anjo da guarda tinha-o abandonado, e a sua mente, extraviada pelo orgulho do saber, entregou-o sem defesa à tentação dos espíritos soberbos, cuja queda arrastou a do mundo. 

Jan Potocki, O Manuscrito Encontrado em Saragoça 

Sem comentários: