quarta-feira, agosto 10, 2011

Um conhecido paradoxo. Excerto de uma tese


Existe uma espécie de paradoxo na presença de estratos sociais mais desfavorecidos, situados nas margens dos principais núcleos de poder e proeminência social, em contexto de produção literária ou, mais notoriamente, em qualquer plano de discurso teórico filiado nas ciências humanas. Real ou infundado, questão que não valerá a pena aqui decidir, este é um paradoxo já apontado e em grande parte debatido no relativamente recente contexto dos chamados estudos culturais. Reside, segundo quem o discute, na apropriação de uma determinada classe (com tudo aquilo que lhe é característico) por parte de um representante de outra classe que com a primeira pouco ou nada partilha de experiência de vida, ansiedades ou expectativas, colocando-se este último discurso numa espécie de território de desfasamento entre locutor e objecto, desfasamento esse em que alguns identificariam laivos de um hipotético colonialismo intelectual. A legitimidade ou autoridade com que o texto teórico em particular, profundamente académico em bastantes casos, se acharia capaz de tratar a condição de um trabalhador ou o combate de toda uma classe oprimida teria, à luz deste paradoxo, os traços do cientista que no seu laboratório analisa determinadas reacções de um roedor, após impostas as condições de uma experiência que a cobaia desconhece por completo.
Se é certo que, para bem do debate e do conhecimento, a falta de uma determinada vivência ou experiência de formação dificilmente poderá desautorizar o indivíduo a um qualquer exercício de reflexão, é porém também legítimo questionar a dimensão ética, digamos assim, da atitude do académico perante o seu objecto de discussão. E isto porque o paradoxo não só reside na opção de estudo ou reflexão, mas também no facto de, sob determinada perspectiva, essa opção congregar um desconfortável e ambíguo misto de consideração e condescendência piedosa: aos olhos do locutor habilitado, o homem que, por exemplo, labora a terra é suficientemente interessante para ser discutido, criticamente abordado e até moralmente promovido, mas curiosamente não suficientemente capaz de tão simplesmente falar por si próprio, até mesmo de esgrimir os argumentos conducentes a um qualquer acto de emancipação[1]. O objecto central do jogo discursivo não conhece as regras desse jogo, nem sequer é considerado capaz de as entender[2]. Tratámos sumariamente esta questão em dissertação de mestrado (Addressing the canon. Beyond the rule of literary politics, Universidade de Edimburgo, 2003) a propósito do cânone literário e da forma absolutamente determinada como a dada altura, especialmente no mundo anglo-saxónico, mas não exclusivamente, se pugnou pela presença, quer a nível de autores quer em termos das temáticas abordadas pelas obras, de grupos étnicos e sociais desfavorecidos e marginais num cânone acusado de, à falta dessa abrangência, ser demasiado masculino, branco, europeu e, para todos os efeitos, na maior parte dos casos, já falecido. Perante tais bem-intencionadas reivindicações, filhas do mais arreigado multiculturalismo, a evidência de que a constituição de um cânone literário só interessaria a quem por isso lutava na arena das paixões académicas levantava a questão sobre se seria justo, ou sequer adequado, utilizar nesse combate o argumento da representação de uma esfera marginal da sociedade num cânone que, para essa esfera, pouco ou nada significa. Mais uma vez o paradoxo mostrava os seus contornos.
No contexto que agora mais nos interessa, o da geração neo-realista em Portugal, o problema ganha uma dimensão mais contundente na medida em que, pelo menos ao nível de um programa de intenções, a massa trabalhadora seria não apenas um objecto ao qual se dedicaria a literatura e a arte em geral, desejadamente empenhada em abrir-se a uma realidade até então tão menosprezada, mas sim, em última análise, a verdadeira razão de ser de uma arte social que se queria interventiva, capaz de denunciar desigualdades e de contribuir para as mudanças necessárias. Regressamos aqui ao de leve à questão da simplisticamente chamada “arte social” porque é obviamente neste plano que o paradoxo de que temos vindo a falar ganha mais força. A discussão do papel do artista e do intelectual, na sua relação com todos os indivíduos que têm em comum não serem artistas ou intelectuais[3], é especialmente central em momentos do pensamento histórico e filosófico (como o marxismo) ou no seio de correntes culturais e artísticas (no caso em questão, o neo-realismo português) em que se invoca precisamente o dever de uns para com outros. A este propósito, é curioso verificar que os jovens escritores e pensadores que enformaram o nosso neo-realismo parecem ter uma aguda noção dos problemas levantados pela relação entre o artista ou intelectual e seu preferencial objecto de análise. No seu segundo romance Fogo na Noite Escura (1943), para dar apenas um exemplo, Fernando Namora relata um serão de tertúlia intelectual que tem lugar no solar de família de um abastado jovem universitário. O capítulo é especialmente tenso, fruto das diferenças sociais, em alguns casos abissais, que separam os presentes. A dada altura, Júlio, um dos protagonistas, é especialmente contundente no retrato do exercício a que ele próprio também ali se dedica:

Os intelectuais, em face das tragédias que os rodeiam, satisfazem as suas responsabilidades iludindo-as com convicções muito sonoras, é certo, mas livrescas. Isto é: conservam-se prudentemente a distância. Este procedimento lembra-me muito o dos ricaços. O rico sabe que existem dramas, é claro. E abre a sua bolsa, inventa a caridade, para que a miséria se não veja forçada a arrombar-lhe a porta. Paga justamente na altura crítica. Nem antes nem depois. Não desperdiça o seu dinheiro com precipitações. Ora nós, os bons burgueses intelectuais, somos evidentemente mais subtis: justificamos o nosso bem-estar, o nosso confortável isolamento, com adesões da inteligência. Como quem diz: estou aqui, deste lado, mas sou dos vossos.[4]

Num plano similar, onde pretendemos agora chegar para discutir o que realmente nos interessa, poderia igualmente questionar-se se um poema neo-realista sobre a falta de trabalho de um assalariado rural lhe é também dirigido, e se para ele poderá ter o poder de um alento ou insinuação de mudança. Sabemos que, nestes termos, o poema em causa teria talvez maior impacto para quem nada conhecesse das agruras da vida rural do que propriamente para o trabalhador que conhece bem de mais a sua condição. Para além disso, falar da criação literária deste modo, falar da sua função, excede em larga medida o propósito destas linhas: não só esta é uma questão com largos séculos de bagagem, como nem sequer terá especial interesse avaliar ao milímetro o que pretende um romance, um poema, um verso que seja, se é que uma obra literária pretende univocamente alguma coisa. O que é certo é que no conjunto de livros de poesia da colecção “Novo Cancioneiro”, para todos os efeitos expressão poética proeminente, ainda que não exclusiva, da geração neo-realista em Portugal, observamos o recurso a várias estratégias com o objectivo aparente de legitimar o poema (numa aparição do poeta em território que não o do turbulento intimismo de linhagem presencista) no que diz respeito à sua relação com o meio social ao qual deseja votar-se e, em última instância, também ao nível da sua relação com os restantes membros de geração, companheiros na concretização de uma determinada orientação artística. A razão de ser da análise que a este respeito se pretende aqui desenvolver prende-se com a riqueza retórica e versatilidade formal que a este nível muita da poesia neo-realista portuguesa patenteia, facto que até certo ponto poucas vezes foi devidamente pesado numa justa apreciação de parte deste legado poético. Quer em termos das mais diversas (ainda que tipificadas) figuras convocadas ou encarnadas pelo sujeito poético, quer ao nível de uma consciente recuperação de formas tradicionais colhidas do ambiente com o qual a poesia procura contactar, parece-nos bastante interessante atestar de que forma os poetas desta geração procuraram atenuar um abismo do qual parecem ter precoce noção, e que corresponde à larga distância social que vai do trabalhador ao intelectual.  


[1] Na sua introdução ao estudo etnográfico de Alves Redol intitulado Glória (1938), trabalho com o qual o romancista afirma o seu interesse por um conhecimento real da vida rural ribatejana, tal como sugerido na sua advertência introdutória ao romance Gaibéus, João David Pinto Correia identifica também, até numa personalidade como Redol, “uma concepção de certo modo negativa da cultura popular, na medida em que nos são por vezes apresentadas com pasmo as produções dessa mesma cultura”.
[2] No contexto do neo-realismo português, cuja linhagem política e filosófica predominante evidentemente se enquadra na problemática relação entre intelectual e trabalhador, esta espécie de velada condescendência relativamente à massa social para cuja emancipação a arte nova deveria contribuir decisivamente surge, em alguns casos, corajosamente denunciada, como em certo artigo de Artur Justino, publicado num dos primeiros números da revista portuense Sol Nascente (“Arte de élites? Arte popular?”, p. 12). Nessa intervenção, o autor exprime as suas reservas, um pouco contra o espírito de outros colaboradores, em relação à aproximação da arte para junto das camadas populares, receando que algo se perca da “arte adulta”.
[3] Falamos aqui, segundo a distinção de Antonio Gramsci, em intelectuais tradicionais, de profissão, e não tanto nos intelectuais orgânicos que, de acordo com o autor italiano, seriam aqueles que, surgindo no seio da própria classe, lograriam liderar a consciência e batalha dessa mesma classe, independentemente da sua ocupação ou actividade profissional. É evidente que a forma como Gramsci caracteriza os intelectuais tradicionais nem sempre se aplica na totalidade aos escritores que aqui nos ocupam a reflexão, embora, a bem dizer, se aplique um razoável número de vezes.
[4] NAMORA, Fernando, Fogo na Noite Escura, 7ª ed., Mem Martins, Europa-América, 1971, pp.164-165.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Se é certo que, para bem do debate e do conhecimento, a falta de uma determinada vivência ou experiência de formação dificilmente poderá desautorizar o indivíduo a um qualquer exercício de reflexão, é porém também legítimo questionar a dimensão ética, digamos assim, da atitude do académico perante o seu objecto de discussão. E isto porque o paradoxo não só reside na opção de estudo ou reflexão, mas também no facto de, sob determinada perspectiva, essa opção congregar um desconfortável e ambíguo misto de consideração e condescendência piedosa (...)"

É por estas e por outras que te tenho tanto apreço. Parabéns, amigo.

João Miguel Henriques disse...

Obrigado amigo. Saudades de falar contigo...