sexta-feira, julho 29, 2011

Da releitura. Excerto de uma tese


Num artigo de 2006, publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias (“Terrenos antigos”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 30 Agosto – 12 Setembro 2006, p.23), António Carlos Cortez faz a elogiosa recensão ao livro Outro Nome, Escassez, As Aves, do poeta Gastão Cruz, uma reunião de três volumes de poesia publicados pelo autor na década de 1960. Deste modo, conforme o autor do artigo tem por bem referir, “estes poemas reportam-se, em primeira instância, a um tempo concreto, facilmente identificável com determinada situação histórica”. No entanto, Cortez não reduz obviamente o impacto desta parte da obra poética de Gastão Cruz a um contexto social e político restrito, sublinhando, por um lado, o paralelo que podemos fazer entre essa atribulada década e os tempos que correm, e por outro lado, e talvez mais importante ainda, “o gesto editorial e autoral que fazem desta edição um exercício de releitura do próprio poeta”. O autor do artigo chega logo a seguir a uma versão própria de certa questão que consideramos decisiva no âmbito da reflexão que os estudos literários se vêem de tempos a tempos obrigados a fazer sobre o seu próprio labor:

Como ler, melhor dito, como reler estes textos? Se até aqui o olhar que por sobre os poemas lançávamos estava votado a uma leitura claramente balizada, muitas vezes submetendo a leitura que deles pudéssemos fazer a uma espécie de preconceito cronológico (como se tais textos mais não fossem que a fotografia de um período absolutamente ultrapassado), como interpretar, agora que novamente se editam, textos que nos assaltam pela sua actualidade? 

Em certa medida, o termo “releitura”, conforme empregue por Cortez, designa no contexto dos estudos literários um conceito curioso na sua significação, dado o sentido quase pleonástico que em si mesmo contém. Todo e qualquer trabalho no campo dos estudos literários parte de uma leitura de textos que é, na esmagadora maioria dos casos, uma espécie qualquer de releitura. Muitas vezes uma releitura que o próprio investigador faz de textos de uma qualquer sua anterior e repetida predilecção, e quase sempre uma releitura de textos já lidos em muitas outras instâncias desde a sua publicação, quando não já mesmo analisados e debatidos em anteriores trabalhos de investigação académica ou crítica literária. Porém, jamais se manifesta a necessidade de alertar uma audiência ou um público leitor para o facto de um dado texto, um conjunto de textos ou a obra de um determinado autor já terem sido no passado objecto de leitura. Leitura é quase sempre sinónimo de releitura, e o significado de releitura é invariavelmente subentendido, diríamos até naturalmente subentendido, passando a palavra à triste condição de supérflua. Certas formulações ajudam a esclarecer a natureza do procedimento em questão, caso ainda fosse necessário. Dizemos muitas vezes “a nossa leitura” ou “a leitura que hoje fazemos”. Com construções deste tipo queremos dizer que um dado texto literário, sempre escrito e, na maior parte dos casos, publicado antes do nosso discurso, foi já alvo de tratamento anterior, e que a leitura que nessa instância se leva a cabo é diferente de leituras anteriores. Diferente não apenas por ser a “nossa” ou a de “hoje”. Essa diferença é acima de tudo qualitativa, dada a crença de que uma herança literária pode sempre ser (re)lida de forma potencialmente inovadora. Não pretendemos aqui lidar com a ideia generalizada e evidente, fruto de muito labor teórico do século XX em torno do conceito de recepção literária, de que cada indivíduo lê um poema ou um romance à sua maneira, dele retirando uma quantidade muito personalizada de sugestões e assim construindo inclusivamente o seu próprio texto e contribuindo para a iluminação da obra em causa. Falamos aqui exclusivamente em termos que poderíamos classificar de científicos, pelo menos no sentido mais ou menos académico do termo. Quando se trabalha um autor, uma obra ou um “momento” literário, quando se regressa portanto a um determinado texto ou conjunto de textos, acredita-se que há qualquer coisa ainda de válido a transmitir. As razões que o justificam são múltiplas e em muitos casos bastante específicas. Ou ainda nem tudo foi dito, ou então terá já passado tempo suficiente para permitir uma nova leitura e análise, cuja diferença de abordagem é a razão da sua legitimidade. É natural que se intrometa igualmente neste conjunto de factores essa noção tão cara a T.S. Eliot de que toda a produção poética marcante nos obriga, não só a uma nova perspectiva sobre as produções que se seguem, como a uma reavaliação da tradição precedente, impossível a partir desse momento de ser lida com os mesmos olhos. O tempo, a memória e também o esquecimento provisório são, em certo sentido, os grandes adjuvantes da releitura. Os exemplos são constantes, e aquele que começámos por dar, ilustrativo da reunião de textos em novas edições, é apenas um entre muitíssimos.

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