Nós vivemos ali perto da Imprensa Nacional, numa daquelas íngremes artérias desarborizadas, expostas a todos os caprichos do clima, da invernosa inclemência à canícula mais severa. A casa não é particularmente espaçosa, mas já luz não lhe falta, luz em marés permanentes, e um certo encanto de recato aburguesado, com a sua biblioteca colorida, a pequena sala de refeições e o soalho original em madeira escura. Aqui vivemos, ia dizendo, numa tranquilidade amorosa conquistada ao rigor do quotidiano e ao efeito cruel de certos dias menos conseguidos. Vivemos, eu e ela. E praticamente desde o início do nosso consórcio, também um terceiro simpático elemento, que com os meses foi ganhando o seu espaço e peculiar influência, como que estranhamente alimentado pela atenção que lhe fomos concedendo, meio ingénuos do que ali se prefigurava.
A vida conjugal, mesmo se isenta de prole, como é o nosso caso, nunca se resume em absoluto a uma existência a dois. Um casal monta casa. É escolhido o mobiliário e são dispostos objectos e comodidades. A todos eles, naturalmente a uns mais do que a outros, fica ligado o casal por laços afectivos de ambígua natureza, amiúde construídos por força e desfrute da diária coabitação, numa mecânica de inconscientes traços panteístas.
Homem e mulher vivem portanto ali perto da Imprensa Nacional, rodeados de livros, ícones decorativos, roupa de cama, instrumentalidades de cozinha e higiene pessoal, e um certo pequeno e flácido animal, de parcas palavras e reduzida locomoção, ao qual se deve atribuir o mérito de connosco ter logrado constituir família.
É que somos mesmo uma família, em todas as mais ambiciosas acepções do termo. Eu, ela e um sapo verde de peluche, de enormes olhos salientes, uma bocarra de interior vermelho vivo e, em cima da cabeça, entre as duas órbitas vigilantes, uma coroa dourada de rei, ostentação permanente de sua batráquia realeza.
Não sei honestamente que movimento afectivo ou rebuscado exercício do nosso intelecto terá promovido este dócil boneco ao estatuto de que hoje é incontestável detentor. O nosso rei, de personalidade um tanto ou quanto fleumática, é suave ao tacto como só o alcança essa prodigiosa combinação de excelsa matéria industrial chinesa, recheada da melhor espuma que até hoje para o efeito se concebeu. Rei de manhã à noite. Onde dorme? Na nossa cama, ora envolvido em abraços ternos ou esmagado, sem um queixume, sob o peso dos nossos corpos. Rei fiel e eterno. O que come? Constantemente a mesmíssima mosca, repetidamente apanhada com admirável perícia, bordada no interior da enorme boca. Rei nosso, nunca posto ou morto. E como passa o dia? A esmagadora maioria do tempo, espojado na cama, na penumbra do quarto, em insondáveis meditações do espírito ou em silenciosa avaliação do estado do seu exíguo reino.
Pus-me recentemente a pensar que coisa poderia significar ou que papel desempenhar este rei batráquio, em volta do qual, por toda a casa, fomos dispondo outras réplicas de sapos e salamandras, em jeito de séquito ou população governada. Fala pouco, sua alteza. Suspeito que jamais nos poderá dizer ao que veio, que ente é. Quando abre a boca é não mais que para repetir, quase ipsis verbis, uma frase ali mesmo formulada, ou para plagiar uma ideia por nós trocada e discutida. Estranha eloquência, aquela.
Creio porém ter já percebido a sua natureza última, se é que não é absolutamente descabido dizer tal coisa de uma figura assim letárgica e sintética. É que faz algum sentido esta suspeita que guardo dentro, até agora inconfessada. Não é rei batráquio outra coisa que uma imagem do nosso amor conjugal, e de tudo o que isso inclui de beijos, juras e sentimentos. Se pela metáfora todos os dias se transmitem e descrevem emoções e arrebatamentos, porque não haveria o amor de se materializar de vez em quando em pedra, objecto, animal, em vez de poema, verso ou palavra? Porque não um sapo reinante em vez de um suspiro ou um silêncio. Sim, julgo que ele é mesmo o amor desta casa, e o amor que um dia levaremos connosco para outro lugar. Não faz uso de extensas palavras e reina sempre sobre todas as coisas à volta.
1 comentário:
Conhecido batráquio deixa a corte em Lisboa, para reinar no agreste frio! - Será Afonso ou Sebastião?
Beijos e abraços
D'Além
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