À conta de ocasionais falhas de memória, e por força do início do ano académico, prenhe de responsabilidades e solicitações, decidiu ela há dias iniciar um tratamento com certo auxiliar farmacopeico, recomendado por um boticário lá do bairro.
Observo-a todas as manhãs na meticulosa preparação da grave fórmula: os piparotes com o dedo anelar nas extremidades da ampola de vidro, a poção vertida para um copo de sumo de maçã (curiosa escolha, certamente motivada pela semelhança cromática), e por fim a solene ingestão da translúcida mistura.
Quedo-me de seguida um bom par de minutos vigiando-a atentamente. Conservo em mim o secreto receio de que algum insuspeito efeito secundário possa logo ali manifestar-se, poderosíssimo. O receio de que ela de repente se expanda em volume e altura, dominando por completo o pé direito da casa. Ou que adquira a incómoda faculdade de me ler o pensamento ou prever acontecimentos futuros. Hipóteses do género, porventura fantasias. Suponho que hoje em dias essas coisas de farmácia já sejam testadas antes, à cautela...
1 comentário:
João,
É curioso sentir a cadência distinta do português daí. Nós brasileiros fazemos duas letras paralelas e concorrentes. A palavra "piparote", por exemplo, me leva diretamente a Machado de Assis, ao seu Brás Cubas, que desanca o leitor ao dizer que a narrativa, se não lhe aprouver, será paga com um devido piparote.
Me identifico muito com o olhar que busca o toque, a pena que cristaliza o olhar em palavras. Que pescoço tenro o da gaja, João! A ampola fálica eu bem vejo que você retém como a pena que transcorre - e escorre.
Receio.
Re-seio.
Portugal e a espanhola.
Um abraço literário,
Bazárov
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