segunda-feira, agosto 10, 2009

Portuguesia - Apontamentos 5

Dia depois. Acordo e desço para o pequeno-almoço. Estou um pouco estremunhado, deficitário de cafeína e ainda pouco habituado à estranha luz do dia. Está carregado lá fora, uma espécie de neblina densa e impenetrável que o sol não dá mostras de lograr desfazer. À mesa, os poetas R.V. e E.M.M.C. trocam desanuviadas impressões sobre poesia oral popular. O segundo tecerá ainda algumas duras críticas à "pobreza franciscana" dos pequenos-almoços nos hotéis portugueses. Isto por comparação, por exemplo, com os brasileiros, onde em certa ocasião, conta o poeta, a mesa do "café da manhã" se estendia, ao ar livre, por todo o comprimento da enorme piscina do hotel. Mas os papo-secos estão bastante razoáveis. E há uma máquina para tirar expressos, segundo me indica a poeta A.V. Do mal, o menos.
Deslocamo-nos depois novamente para a Casa de Estudos Camilianos, onde nos aguarda um dia potencialmente longo. Ainda assim, R.V. já me transmitiu que não poderá ficar até ao fim. "Sairemos lá para as seis da tarde, se não te importas". Que seja então: para as seis fica apontado o regresso.
Das mesas de debate não darei aqui grande conta, se bem que tenham sido interessantes, sim senhor. Numa delas, o poeta A.C., que eu aliás desconhecia por completo, faz uma fulgurante e apaixonada reflexão sobre a condição da poesia, defendendo-a e insistindo na ideia da "descolagem" enquanto metáfora definidora da criação. Sabe-me bem ouvi-lo. No final, aplaudo ruidosamente.


Também os meus amigos L.S. e F.A., ambos com firmado trabalho experimental, ainda que com orientações distintas, contribuem bastante para a manhã de conversas. O primeiro faz também a sua pessoal diatribe em defesa do acto poético, naquilo que tem de mais indomável e gasoso. Já F.A. vai respondendo de forma concreta a perguntas da moderadora acerca da criação, da escrita, ou mesmo da ideia (será ideia?) que precede a essa materialização poética em palavras.
O almoço é depois servido no próprio espaço do evento, um bufê farto de iguarias, com vinho em quantidades absolutamente minhotas, à medida dos poetas mais líricos. O dia pôs-se que é um encanto. Diante deste recente edifício consignado aos estudos camilianos, onde nos encontramos, encontra-se a antiga casa do escritor, pintada de amarelo, à beira da estrada. Ponho-me a imaginar Seide naquele tempo, mais despido de casario, pejado de eiras de milho e hortas gordas, sem os carros que passam pela estrada com a excessiva velocidade dos emigrantes. Sim, não há dúvida que teria sido, e ainda é, um bonito lugar para escrever e congeminar intrigas. novelescas Alguns dos poetas aproveitam a pausa de almoço para visitar de relâmpago a casa do escritor, o que irá atrasar em meia-hora os trabalhos da tarde. Às 15:00, sou incumbido de os ir lá chamar para o reatamento dos trabalhos. Entro numa casa cuja decoração e disposição de mobiliário é a mesma de há décadas atrás, num perfeito estado de conservação que lhe valeu há alguns anos a distinção de melhor museu nacional. Maldição. Devia ter-me juntado ao grupo nesta breve visita à casa. Outra oportunidade terei, assim o espero.


O que honestamente me aflige é não ter ensejo de ver, por pouco que seja, o filme que resultou das pesquisas antropológicas do W.S. pelos meandros da poesia lusófona. Poetas a ler seus poemas, nos mais diversos ambientes. Estou curioso, confesso. Antes do filme, lugar para mais um debate. "Poesia de livro: objecto e produto". É o tópico editorial em discussão. Estou interessado. Fala-se das conhecidas dificuldades de distribuição dos títulos de poesia. Os grandes monstros livreiros não têm já muito espaço para a poesia, mesmo para aquela que vai vendendo alguma coisa. A grande questão fica no ar, aguardando propostas de solução: que outros canais de distribuição e venda para a poesia? Que estratégias colocar em prática? Ao mesmo tempo, dou por mim a pensar se este proselitismo editorial se adequará à poesia. Sim, seria bom se mais leitores houvesse. Mas não os havendo, dever-se-á impingir uma coisa que é por natureza quase instintiva e pessoal predilecção do espírito?
Por fim, o filminho. Ainda que somente um quarto de hora, por restrições de horário. Assisto com gosto aos poetas em película. Fico a escutar as diversas dicções, os rostos em esgar declamatório. Mas estremeço quando me vejo. Um close-up quase invasivo. Estou demasiado solene, cerro os olhos às palavras mais decisivas. A voz também me soa algo esganiçada como é costume acontecer quando me ouço. Mas a coisa dura pouco, graças a deus. Depois saio com R.V. para iniciar o regresso a Lisboa. Está na hora de abalar.
Falamos muito pelo caminho. Trocamos impressões. Concordamos em quase tudo. Bom evento, este. A Portuguesia do W.S. está porém longe de acabar. Seguir-se-ão ainda outras poesias lusófonas. Brasil, Angola, Moçambique, Macau... O globo aguarda a incursão corajosa do incansável antropólogo de poetas. Nós aguardamos o resultado do projecto, os frutos da sua genuína paixão. Esperamos a luz do teu olhar, amigo mineiro.

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