No Colégio Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, onde estudei, havia um rapaz que tinha fama de mentiroso. Fama, não; ele era mentiroso. Todo o mundo sabia disso; todo mundo menos ele. Certa manhã o rádio transmitiu uma notícia alarmante: um avião em dificuldades - o trem de pouso não baixava - sobrevoava Porto Alegre, e podia cair a qualquer momento. No colégio (nossas aulas começavam logo depois do meio-dia) não se falava de outra coisa. Estávamos ali, preocupados, quando apareceu o nosso colega. Pálido, nervoso, disse que tinha visto uma cena terrível: o avião que estava em perigo caíra perto de sua casa e explodira, uma coisa medonha, muitas vítimas. Nós escutávamos, impressionados. Aí veio um colega correndo, com a boa notícia: o avião acabara de aterrisar sem problemas. Caímos na risada, claro. Mas o colega mentiroso não ria, mostrava-se ofendido: não pode ser, repetia teimosamente, eu vi o avião cair.
Agora, quando lembro este facto, concluo que, num certo sentido, o rapaz não estava mentindo. Vira, realmente, o avião cair. Com os olhos da imaginação, decerto; mas para ele o avião tinha caído, e tinha incendiado, e muita gente havia morrido...
O rapaz acreditava no que dizia, porque no fundo era um ficcionista. Se tivesse escrito o que contara, seria um escritor, bom ou mau; como não escrevera, tratava-se de um mentiroso.
(o escritor brasileiro Moacyr Scliar, em depoimento autobiográfico ao último número do Jornal de Letras)
(o escritor brasileiro Moacyr Scliar, em depoimento autobiográfico ao último número do Jornal de Letras)
2 comentários:
E acredita que vou referir este episódio em proveito próprio com muito boa gente. Muito útil me vai ser. Ficcionista pois claro, agora cá mentiroso.
Muito, muito interessante. Ponto de vista interessante ;)
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