Há qualquer coisa que a um mesmo tempo me inquieta e entusiasma no trabalho da poeta brasileira Karinna Alves Gulias (Niterói, 1983), uma das participantes da recentemente apresentada performance de poesia sonora "Indivisível". Suspeito que essa entusiasmada inquietação tenha que ver com a proliferação de sentidos inesperados e com a forma aparentemente simples e natural com que essas surpreendentes associações são veiculadas. Uma linguagem contundente, crua até, aplicada a um universo onírico. O tom sentencioso de algumas passagens, a descrição ao jeito de uma velada omnisciência das coisas, estes são elementos que sugerem um certo carácter fundador ou mitológico nos poemas avulsos que até agora pude ler. Como se, assim soltos, os poemas fizessem parte de um livro maior, uma história de origens, sobre a criação das coisas ou as fundações da humanidade e da linguagem. Até à publicação do seu primeiro livro, poderão conhecer o trabalho da Karinna através do seu blog pessoal, Galeria de Beggar's Body Art, na página que a revista electrónica Zunái lhe dedica, ou então visitando a belíssima Confraria do Vento, onde é possivel também ler alguns textos seus. A poeta encontra-se igualmente antologiada no livro Poetas de Hoje em Dia(nte) (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 2009). Para ilustrar a ambiência genesíaca de que falava, deixo-vos "A primeira história" da Parte I de Terra dos Nomes Perdidos.
Uma mãe feita para criar bois [espelhados],
administrar a base da terra para a permanência.
Fez um filho com a massa negra da noite.
Uma mãe feita para criar bois [gigantes]
e aumentar a sua sombra.
Acendeu velas
para o dia em que seria dona de cria.
Com o movimento,
seu nome mudou-se para outra casa;
pertence a outro número. A outro ofício.
Na mudança:
- De todos os rios por que passou,
ficou-lhes terços de seu cabelo, agora branco,
como espuma de mar.
À noite os rios a visitavam e derramavam
transparências em seu peito. De seu ventre, então,
nasceram cabelos de estrelas e espumas de mar. -
Mais uma vez seu nome foi mudado de casa,
até a vontade se retrair.
Seus cabelos caíram e o nome passou a ser:
poca sombra
e por fim
Nasceu um menino.
Uma mãe feita para criar bois [espelhados],
administrar a base da terra para a permanência.
Fez um filho com a massa negra da noite.
Uma mãe feita para criar bois [gigantes]
e aumentar a sua sombra.
Acendeu velas
para o dia em que seria dona de cria.
Com o movimento,
seu nome mudou-se para outra casa;
pertence a outro número. A outro ofício.
Na mudança:
- De todos os rios por que passou,
ficou-lhes terços de seu cabelo, agora branco,
como espuma de mar.
À noite os rios a visitavam e derramavam
transparências em seu peito. De seu ventre, então,
nasceram cabelos de estrelas e espumas de mar. -
Mais uma vez seu nome foi mudado de casa,
até a vontade se retrair.
Seus cabelos caíram e o nome passou a ser:
poca sombra
e por fim
Nasceu um menino.
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