segunda-feira, março 26, 2007

A hora da sensação verdadeira

Keuschnig estava em frente da porta da casa, e como não sabia como se havia de comportar e qual a sequência dos seus actos sentiu-se mal. Não compreendia como é que tinha encontrado todos os dias o caminho para casa, que não tivesse desaparecido no caminho. Porque é que ainda hoje no metro segurara na mão, com cuidado, a chave da casa? É preciso que ensaie em pensamentos o que tenho de fazer de seguida, pensou ele. De qualquer modo, tinha primeiro de pôr a pasta no bengaleiro. Era então de esperar (...) que a criança fosse a primeira a vir ao seu encontro e que o pudesse proteger dos outros. Se a criança não aparecesse (porque já estava a dormir), então assumiria o mais rapidamente possível no bengaleiro a cara conveniente e (...) apareceria às pessoas sem movimentos desnecessários. Não esperava nada, não se alegrava com ninguém. Quanto mais se aproximava delas, menos coisas em comum tinha com elas. Quando dava a volta à chave, a princípio de propósito na direcção errada, teve a impressão de se movimentar em direcção a hieróglifos há muito gravados na pedra e tornados ilegíveis para ele. Logo de seguida iria ter de ouvir a pergunta: «Então como vais?», e nem sequer podia, de imediato, ripostar. Mexeu o queixo de um lado para o outro e relaxou-se; sorriu antecipadamente para ao menos ter uma semelhança flagrante consigo próprio.
Peter Handke, A Hora da Sensação Verdadeira (Difel)

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