terça-feira, janeiro 27, 2004

Cinco

Pensei em poder escrever qualquer coisa sobre esta cidade. Não seria a primeira vez que me ocorre dizer um par de coisas sobre os lugares que por mim passam. Esta não é porém uma cidade qualquer. Tem uns quantos poetas, disso não duvido. Mas na verdade esta cidade é habitada por laranjeiras e pelos perfumes que delas emanam, efervescentes. Por aqui o sol bate por dentro em golfadas suaves. As ruas da antiga judiaria arrumam-se apertadas nas margens de um rio em cotovelo. Eu queria escrever qualquer coisa sobre esta cidade, porque nela os becos têm sempre qualquer coisa à nossa espera. Ao peregrino oferecem-se ondas de sentimentos inéditos , forjados ao encanto do passado. Uma cidade que o tempo fez passar de mão em mão, ao sabor da peleja. A roma de colunas sólidas. O orgulho bárbaro. Uma estrela de oito pontas. O grande alá. A reconquista de anjos e santos, nos seus galardões de ouro. Por tudo isto, pelas pedras sobre pedras suspensas no perfume dos pomares carregados, achei que até podia escrever umas coisas sobre esta flor de laranjeira. Berço de averróis, citada por cervantes, cantada pelo fulgor de gôngora. Achei que podia falar disto tudo. Mas quando me pus a rabiscar uns prelúdios, voltaste-te para mim do espelho a que te enfeitavas e perguntaste, perfeita como és: 'vais escrever sobre mim?'
Como é possível escrever duas linha decentes depois de ouvir isto da tua boca? Como é possível não me entregar de bom grado ao motivo de uns lábios doces e dedicar-lhes a escrita toda?