terça-feira, dezembro 20, 2005

Dia trinta

Acordei hoje no quarto escuro, acossado pelas possibilidades de uma transmutação semântica do nosso léxico. Não uma total transformação de sentidos ou classes morfológicas, apenas um enxerto novo num ou noutro nome comum ou abstracto.
Chego de manhã ao escritório. Tenho em cima da secretária, junto ao planisfério, o recibo do meu vencimento. Vencimento. Sempre aguardado, sempre simpático. E também uma dessas palavras que se prestam a outros empregos fictícios . Quisera resgatar o termo à sinonímia com salário, ordenado. Retirar o vencimento do infame campo semântico do labor remunerado. E porque não fazê-lo regressar para perto da raíz que partilha com vencer e vencedor? Mas suavemente, sem pressas. Do sufixo mento, fonte de uma amena substantivação, preservaria a sonoridade branda e tranquila. Teríamos então, que bom seria, um vencimento não no sentido rigoroso e marcial de vitória ou conquista, mas mais enquanto progressiva imposição da matéria, afirmação consentida de um poder que não molesta totalmente. Um vencimento não como antónimo de derrota, mas mais como o oposto de suave rendição. E nessa altura, para submeter à experiência a deliciosa possibilidade, escreveria versos como o vencimento do meu corpo por teu intermédio, ou passagens descritivas como o vencimento da manhã sobre a noite longa tinha no costumeiro tom rosáceo o prenúncio de um dia quente. São coisas a que as palavras se prestam na minha cabeça. Imagino.

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